TERRA DE NINGUÉM NO TRÂNSITO ADUANEIRO, EXISTE?

Já percebeu que entre o momento da descarga do veículo e o armazenamento da carga nenhum órgão do Estado se responsabiliza pela integridade da mercadoria?

Postado em 07/07/2020


TERRA DE NINGUÉM NO TRÂNSITO ADUANEIRO, EXISTE?


Certa vez, um cliente entrou em contato com o escritório procurando amparo jurídico a respeito de um Auto de Infração lavrado pela Receita Federal do Brasil o qual o  responsabilizava pelo extravio de uma mercadoria que supostamente estaria sob a sua guarda. 


Ao analisar o caso, notamos uma prática muito curiosa envolvendo a Receita Federal, o recinto alfandegado e as Transportadoras Internacionais, vamos entender melhor?…


ENTENDENDO O CASO: EXTRAVIO NO TC-4


O cliente, transportador internacional, foi contratado por um agente de carga para trazer uma mercadoria do exterior para o Brasil. Detalhe: o importador planejou desembaraçar a mercadoria em recinto alfandegado na zona secundária, ou seja, a mercadoria chegaria na zona primária (porto, aeroporto ou pontos de fronteira) seria coletada por uma transportadora nacional, no caso com um caminhão, e levada para o recinto alfandegado em zona secundária. 


No Comércio Exterior e no  Direito Aduaneiro, tal situação é  conceituada como Trânsito Aduaneiro, isto é, um regime aduaneiro especial que permite o transporte de mercadoria de um ponto a outro do território aduaneiro com suspensão do pagamento de tributos, sob o controle aduaneiro. 


Vamos ao exemplo para entendermos o trânsito aduaneiro? Imagine que você more em Americana-SP e queira importar uma mercadoria por transporte aéreo. Ora, Americana-SP não tem aeroporto internacional com capacidade de receber cargueiros, mas tem uma área chamada “recinto alfandegado de zona secundária” que se compara a um porto ou aeroporto para fins de reconhecimento do governo (o recinto alfandegada de zona secundária é considerado um porto longe do mar ou aeroporto longe das torres de comando). A mercadoria chega em Guarulhos-SP e é recolhida por um transportador nacional contratado por você. Enquanto a mercadoria não chegar no recinto alfandegado de zona secundária em Americana-SP, não haverá cobrança de impostos ou fiscalização da Receita Federal. Os impostos e a fiscalização da Receita Federal só ocorrerão quando a mercadoria chegar em Americana-SP. Chamamos esse trajeto de Guarulhos-SP à Americana-SP de mercadoria em trânsito aduaneiro. Tal situação é conhecida no transporte aéreo pelo termo técnico TC-6 ou TC-4 (a sigla TC significa Tratamento de Carga). 


Voltando para o caso…

Como se tratava de trânsito aduaneiro, a transportadora internacional foi contratada para fazer o transporte até o aeroporto e de lá outra transportadora seguiria com a operação. 


Pois bem, a transportadora internacional chegou no aeroporto, informou a Receita Federal sobre o peso, quantidade das cargas (no sistema SISCOMEX MANTRA) e descarregou todas aquelas que trazia. A partir da sua chegada ocorre o despacho de trânsito, e, posteriormente, a desconsolidação da carga (quando as cargas são separadas em volumes específicos correspondentes mercadorias de cada importador).

E para onde a carga é destinada após a chegada do transportador?

No nosso caso, como a carga iria para o trânsito aduaneiro, foi destinada para um local chamada “Área Pátio”, uma área demarcada pela Receita Federal em que as cargas destinadas à movimentação imediata são colocadas, e não para o armazém do armazenador (como acontece nos casos em que não existe trânsito aduaneiro). Ainda, o armazenador faz o lançamento das informações sobre a carga desembarcada no sistema TECAPLUS utilizado pelo armazém, mesmo que a essa não seja destinada para armazém. 


Ocorre que, a carga pode ficar no pátio por 24 horas. Caso sejam passadas essas horas sem a vinculação de uma declaração de trânsito DTA, a mesma é destinada para o armazém.  No nosso caso, a carga não foi retirada dentro desse prazo, e, deste modo, foi para o armazém do armazenador. 


Chegando no armazém, o armazenador notou que faltava um volume da mercadoria e constatou o extravio da mesma. É nesse ponto que a Receita Federal entrou na história e entendeu que a transportadora internacional deveria ter cuidado da mercadoria, pois era responsável. Assim, o órgão governamental lavrou o Auto de Infração. 


QUESTIONAMENTOS SOBRE O AUTO DE INFRAÇÃO 


O argumento utilizado pela Receita Federal é o de que uma Instrução Normativa da Receita Federal responsabiliza o transportador internacional no caso da mercadoria ser extraviada  quando essa não é destinada ao armazém. 


O primeiro ponto que nos faz discordar da Receita Federal neste caso está relacionada com o tipo de responsabilidade que o transportador internacional adquire ao aceitar realizar a prestação de serviço. 


Ora, ao ser contratado pelo importador e/ou agente de carga, o transportador internacional, em casos parecidos com o nosso, se obriga a prestar um serviço de transporte, ou seja, levar a mercadoria da origem até o destino, em troca de uma remuneração que será devidamente paga pelo importador.


Neste contexto, o transportador não se obriga a guardar a carga após a sua chegada no destino, até porque este não armazena nada… De outro modo, o único período em que o transportador deve garantir a integridade da carga é enquanto essa está sendo transportada por este no veículo, ou seja, o transportador é responsável pela carga do ponto de origem até o de chegada. 


Aqui, defendemos que o transportador internacional não tem a obrigação de cuidar da carga após a sua chegada, uma vez que a natureza do serviço de transporte apenas obriga o transportador a cuidar da carga enquanto a mesma estiver sendo transportada. 

A hierarquia da Instrução Normativa da Receita Federal


Uma das principais lições aprendidas nas aulas de direito é que as normas seguem determinada hierarquia. No nosso caso, uma Instrução Normativa da Receita Federal só pode ser criada quando uma lei permite. Isto é, a Instrução Normativa não pode criar direitos ou deveres. 


Observa-se, portanto, a inexistência de qualquer lei superior que dê permissão para a Receita Federal do Brasil criar uma Instrução Normativa que responsabilize o transportador internacional em caso de extravio ou avaria da mercadoria após a chegada da carga. Dito isso, podemos concluir que essa norma da Receita Federal não deveria ser válida.


A responsabilidade do Agente de Carga 


Quando o importador deseja realizar uma operação de importação, este contrata o agente de carga que tem um conhecimento específico para realizar a mesma. Nesse contexto, o papel do agente de carga é o de contratar o frete para o importador na condição de representante, bem como consolidar ou desconsolidar a carga. 


Com efeito, a legislação brasileira imputa responsabilidade ao desconsolidador de carga, ou seja, ao agente de carga, por avaria ou extravio ocorrido enquanto a mesma permanecia no área pátio. 


Além disso, se analisarmos a lei de transporte multimodal ( transporte realizado em diferentes modais)  notaremos que o transportador internacional não tem autorização para realizar este tipo de operação.  Aqui, fica Clara a responsabilidade do agente de carga em viabilizar o transporte multimodal ficando responsável pela guarda da mercadoria 


 AS 24 HORAS NA TERRA DE NINGUÉM? 

Como vimos, no trânsito Aduaneiro a mercadoria fica 24 horas no pátio aguardando ser retirada, não sendo responsabilidade da armazenador ou outra entidade/concessionária do governo  zelar pela sua guarda.


Nesse sentido, a legislação aduaneira imputa responsabilidade aquele que fica responsável por vigiar a mercadoria,  tendo em vista que a armazenador sempre argumenta a sua ausência de responsabilidade na Guarda e fiscalização das mercadorias situadas no pátio do aeroporto, a Receita Federal encontrou um modo de responsabilizar o transportador transportadora internacional neste tipo de operação.


 Ora, como vimos no item anterior, a norma da Receita Federal desrespeita o sistema de hierarquias do direito do aduaneiro! Uma vez que tal norma não deve ser aplicada, a quem fica o dever de fiscalizar e guardar a carga?  Na nossa opinião, esse dever cabe ao armazenador tendo em vista que a empresa tem como objetivo oferecer a estrutura necessária para a manutenção e  a viabilização das operações  nos aeroportos brasileiros. 


Terra de ninguém?  Isso não pode existir!  Cabe ao estado, por meio das suas instituições e órgãos, oferecer segurança  à zona alfandegada.  De outro modo,  seria um tanto quanto estranho o transportador internacional ficar responsável pela guarda da mercadoria no pátio do aeroporto. 


 Pergunto:  teria o transportador internacional que contratar segurança privada para atuar no pátio dos aeroportos?  Teria a transportadora internacional o dever de contratar seguranças privados para manter a carga segura no pátio do aeroporto?  Poderia a transportadora internacional ter o poder de polícia para abordar, fiscalizar ou interrogar possíveis suspeitos que representem ameaça de extravio ou avaria da carga? 


 Tais perguntas demonstram a insuficiência do argumento apresentado pelo armazenador e pela Receita Federal em dizer que a transportadora internacional é responsável pela segurança da carga mesmo após a chegada e o cumprimento do serviço que se obrigou a prestar. 


CONCLUSÃO


Neste post analisamos a responsabilização da transportadora internacional no caso de extravio ou avaria da carga no pátio do porto ou aeroporto durante o trânsito aduaneiro. 


Nessa linha, vimos rapidamente o que é trânsito aduaneiro, recinto alfandegado de zona secundária e o procedimento de entrada da carga em Trânsito. 


Além disso, expomos nossos questionamentos sobre a responsabilização do transportador internacional nestes casos, apontando não fazer sentido que essa obrigação recaia sobre o transportador, uma vez que a guarda da carga após a conclusão da prestação de serviço de transporte foge da natureza deste tipo de contrato. 


Ademais, vimos que o agente de carga tem a responsabilidade de zelar pela condição desta enquanto não estiver na posse dos transportadores. 


Por fim, salientamos que tal situação gera uma violação à cidadania dos intervenientes que atuam na condição de transportadora internacional, tendo em vista que a atitude do órgão estatal gera grandes prejuízos financeiros e morais a aquelas.


Para se manter atualizado, é só ficar ligado aqui no blog. E se quiser tirar dúvidas sobre qualquer assunto de Comércio Exterior, agende uma consulta com nosso especialista.


 

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Tags: importação,exportação,despachante aduaneiro,agente de cargas


Murilo Lopes - Há ± 64 Meses
Muitas vezes a transportadora internacional passa por esta situação. Muito boa as informações desta matéria.
 
1 comentários